ANO UM

Terceira Via™, estreia da performance na SOLAR Galeria de Arte Cinemática, Setembro 2013, © Margarida Ribeiro

Desde 2013 que tenho vindo a apresentar a conferência-performance TERCEIRA VIA™ em diversos contextos dentro e fora de Portugal, assumindo-a, desde 2014, como o evento transitório que marca simultaneamente o fim do Ano Zero (2012-2013) e o início do Ano Um (2015-2016) do macro-projeto Universidade | Yliopisto. Após uma residência introdutória apoiada pelo Núcleo de Experimentação Coreográfica (Porto), em 2013, a performance é pela primeira vez apresentada, ainda em modo Beta, no contexto do programa Cuidados Intensivos, projeto desenvolvido no âmbito do Circular/Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, com curadoria de Joclécio Azevedo. Aproximando-se o lançamento oficial do Ano Um da Universidade | Yliopisto, em 2016, com a abertura do website interativo, a publicação do número #0 do manual de instruções Realpolitik™ e a apresentação da primeira de três TED talks, e após a realização do primeiro cluster internacional do projeto em Bucareste (Julho de 2015), re-publico aqui, em jeito de introdução quasi-promocional, o texto que escrevi para o catálogo dos Cuidados Intensivos (editado em 2014), por reconhecer nele uma súmula teórica do trajeto percorrido ao longo das duas “trilogias” anteriores — Vou A Tua Casa (2003/06) e A Oportunidade do Espectador (2007/08) —, e respetivos projetos documentais — Projecto de Documentação (2007) e Big Curator Is Watching You! (2010), ao mesmo tempo antevendo as bases teóricas fundamentais que vão estruturar, ao longo dos próximos 3 anos “letivos”, um novo projeto-trilogia e também um novo andamento no meu trabalho artístico e de investigação. 

Cuidados Intensivos, conversa pública durante a exposição Depósito de Artefactos Performativos, no Centro de Memória de Vila do Conde, Maio 2013, © Cátia Pinheiro

AESTH(ETHICS)
Notas para a compreensão do meu trabalho à luz (filtrada) do projecto Cuidados Intensivos
Todas as coincidências vêm por bem! Invisto neste postulado um sentido de fé (sinónimo de “certeza”) que considero inabalável, mas que nada tem de espiritual; é factual. Quando Joclécio Azevedo me convida para o projecto Cuidados Intensivos, pede-me uma contribuição documental para um programa de acções que pretende reflectir sobre a própria ideia de documentação; um enunciado que resume muito bem aquele que pode ser considerado o ADN do meu trabalho nos últimos 7 anos. Inerente ao processo de recolha e organização de objectos-memória, que subjaz a muitos dos meus trabalhos e legitima o projecto Cuidados Intensivos, está uma autonomização do processo documental que ultrapassa a ideia clássica de documentação enquanto operação subsidiária de uma acção (efémera, por norma) que é ou foi tornada pública e precisa de ser resgatada da sua morte natural. Ao invés, esse processo documental (e seus sub-produtos: arquivo, sistematização, taxonomia, organização, legendagem…) versa sobre si mesmo, numa autofágica trama de auto-referenciação. Como se no “hospital” erguido por Joclécio Azevedo habitassem objectos “ligados à máquina”, numa perpetuação artificial de matérias cuja vida subsiste já, ou apenas, na sua mera enunciação/nomeação. Respiram, porque são reactivados pelo olhar do espectador. Os artistas convidados e os objectos por eles cedidos, devidamente catalogados e etiquetados, têm assim uma função meramente “pretextual”. Ora, é neste meta-discurso que configura o referente enquanto pré-texto para se chegar a um outro texto, que encontro a coincidência maior entre os dois sistemas: trasladar alguns objectos-charneira do arquivo do meu trabalho para o dos Cuidados Intensivos não impôs qualquer alteração significativa do ponto de vista conceptual; a sua natureza referencial manteve-se intacta. Por outro lado, a coincidência formal entre os dois universos (o habitat e o habitante) fez com que este convite, em vez de absorver o meu trabalho, o reflectisse — um dispositivo especular que explica, roubando a Paul Virilio, parte do word game que dá título a este texto:
“Screen against screen, the home computer terminal and the television monitor find themselves in a face-off for the domination of the market global perception. This is a market of the icon rather than the idol; control of it will open a new era whose novelty will be as much ethical as aesthetic.”
[Paul Virilio, “The Visual Crash”, in CTRL [SPACE]. Rhetorics Of Surveillance From Bentham To Big Brother, 2002]

Ao ensaiar uma nova metodologia de colaboração e ao multiplicar-se por um desenho duracional de actividades distintas, mas concêntricas, Cuidados Intensivos sublinhou, assim, algumas das características mais imediatamente reconhecíveis do meu trabalho: o estado permanente de quarentena; a obsessão pela racionalização do risco, da falha, da ineficácia, da efemeridade; o investimento de sentido nas ideias iniciais, nos esboços, nos rascunhos, nos dados introdutórios, nos elementos em jogo (e respectivas cartas fora do baralho); a inevitável mise-en-abîme duchampiana da enunciação constante, da consciente sobrevalorização da legenda (mais que do objecto legendado), da extensividade quase infinita do “processo”, etc. Participar neste projecto permitiu-me, assim, re-equacionar problemáticas que já faziam parte da minha investigação, ao mesmo tempo que me convidou a construir novos axiomas, tornando-me consciente daquela que é, talvez, a questão seminal que alicerça todo o meu trabalho: O que é possível dizer, quando já tudo foi dito? Pergunta sem resposta (como todas as boas perguntas), mas a partir da qual este texto se permite a encerrar mais uma experiência meta-discursiva com vista a uma síntese propulsora de infinitas novas teses: prolongamento mais-que-perfeito da vida post-mortem desta minha participação nos Cuidados Intensivos (sim, porque a “máquina” continua ligada…). E assim, ao rever a matéria dada, clarifico não só o caminho que desemboca na performance Terceira Via™, mas também aquele que pretendo trilhar durante o próximo ano, num projecto que irá inaugurar não uma nova fase, mas um novo andamento. Chama-se UNIVERSIDADE e na verdade já começou: neste texto. Regresso a Mark Dion, que extensivamente citei num dos momentos públicos, pois é com base num dos seus aforismos que pretendo iniciar esse projecto, fazendo a historiografia das minhas Ideias, através da abertura ao público do museu das minhas Coisas:
“Never in History the world has a culture been so based on Stuff”.
[Mark Dion, Archaeology, 1999]
Por enquanto, comprometo-me a anular o texto, para apresentar apenas as notas de rodapé (roubo formal descarado ao Enrique Vila-Matas), fazendo o resumo possível da minha passagem pelos Cuidados Intensivos em 20 notas simples. Ao leitor caberá a responsabilidade est(ética), logo política, de moderar as forças causadoras da tensão entre o que o artista diz e o que o artista faz. Lendo: 
(1)
Correcção retroactiva da realidade — Interesso-me pelo que é, quase nunca pelo que será, às vezes pelo foi, sempre pelo que poderia ter sido. Ou seja: never skip the intro, stay there!
(2)
“Intensivo” e “extensivo” são doppelgängers — Se estivéssemos a falar de música, o meu trabalho seria sempre uma extended version, nunca uma radio edit.
(3)
Auto-citação (Centro de Memória, Vila do Conde, 25 de Maio de 2013) — “Aproveitando a coincidência do espaço sistematizado e taxonómico que é o arquivo da exposição Depósito de Artefactos Performativos, pretendo operar um diálogo-readymade, ao mesmo tempo amador e científico, entre a presença documental (e memorial) de alguns objectos-prova e a ideologia possível criada a partir da arqueologia do supérfluo, do inútil, do parasitário ou do insignificante. Ou sobre a separação higiénica entre Arte e Coleccionismo.” Por exemplo:
(4)
“Cenografia”, para mim, é reconhecer que a estante que guarda os meus livros em casa é a mesma que vai guardar os meus livros na galeria — Há uma linha que separa a criação da revelação; o problema é que essa linha é invisível, o que me leva a crer que se calhar não existe. Já a minha Wunderkabinnet não é uma metáfora. Existe!
(5)
Bouvard e Pécuchet são uma e a mesma pessoa — Faço da “prática artística” o meu campo de investigação, mas sempre na condição de diletante, o mesmo que ama e odeia, ou então que ama porque odeia, o mesmo que enfrenta a cultura dominante, que desafia a percepção e a convenção, que desmistifica a autoridade. Não sou da Arte, mas estou na Arte. Sou um observador participante (vulgo nerd) movido pela mesma obsessão que dirige a acção de um coleccionador que tudo faz para conseguir o selo que lhe falta (e que muito provavelmente não existe).
(6)
Também não existem verdades inquestionáveis, por isso crio as minhas — Pesquisa Google: Dogma 2005.
(7)
Nomenclatura — O conceptual não é um género, não é um estilo, não é uma moda, não é uma tendência. É só um adjectivo que adjectiva aquilo que é do “conceptual” (substantivo). Também não tem gradações: ou é conceptual ou não é conceptual.
(8)
Distopia — Muitos artistas procuram “estética” em universos exteriores à mesma: a estética da ciência, da política, da cultura pop, da economia, das relações sociais, do quotidiano, das preocupações ecológicas, dos direitos humanos, da libertação LGBT… A mim só me interessa a estética da Estética. A Arte, enquanto receptáculo ao mesmo tempo côncavo e convexo dessa mesma Estética, torna-se assim não o lugar onde estou, mas o ponto a partir do qual me posiciono. E é sempre o local de um crime, o terreno mais propício à criação de ideologia.
(9)
Entropia — Por exemplo, um dos meus passatempos preferidos é descobrir Arte que não se parece com arte, uma espécie em vias de extinção (tal como as Ideias).
(10)
Peta-Byte Age — No dia em que Arthur Danto morre, eu escrevo este texto, e 120 obras filosóficas do século XX são colocadas online para download gratuito. Todas as coincidências vêm por bem: para quê cantar “ao vivo”, se podemos fazer playback?
(11)
Sobre métodos, metodologias, estratégias e estratagemas, sigo o Código Deontológico dos Jornalistas, e depois tenho vários amigos — “O obscurantismo pedagógico procura asilo e refúgio na tecnicidade” (Georges Gusdorf); “O especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre um domínio cada vez mais restrito, de modo que a sua realização perfeita é saber tudo sobre nada” (Chesterton); “É por isso que a verdadeira teoria crítica, se um dia houver, será idêntica à mística autêntica. (…) Como crítica do caminho, ela levará aonde nós estamos” (Peter Sloterdijk). E eu respondo: Aqui.
(11a)
Chegar à Arte sem ser através da arte — Segundo o cozinheiro Ferran Adrià, existem 4 níveis de criatividade: 1) seguir a receita, 2) adicionar um cunho pessoal à receita, 3) inventar uma receita nova, 4) criar uma técnica para inventar receitas novas. O último nível é, na verdade, o único verdadeiramente “criativo”.
(11b)
Hermenêutica Nerd (parte II) — “O melhor não é necessariamente bom” (Thomas Hirschhorn). E a preguiça é o novo avant-garde.
(12)
Não sou situacionista, sou um Homo Ludens — O meu destino, como o de todos os Homens, é o de e-Xistir. Ler o ensaio filosófico “Vigiar e Punir” de Michel Foucault. E depois ler o manual de instruções “1984” de George Orwell. E a seguir construir uma prisão sem paredes dentro de uma galeria chamada You Are Free To Do What We Tell You.
(13)
Pediram-me que escrevesse, em Lingua Franca, uma frase que sintetizasse o meu trabalho — Assim: “My work is more ontological than anthological, which means it cares less about History, and more about his’story: the best story to be told is the one related to the project itself.”
(14)
Reality Show — O meu trabalho consiste em juntar, a cada novo projecto, o prefixo mais conveniente à palavra “Realismo”. Por exemplo: Novo-Realismo, Proto-Realismo, Sub-Realismo, Meta-Realismo, Über-Realismo, A-Realismo, Alter-Realismo, Infra-Realismo, Re-re-re-Realismo (também conhecido por Realismo Gago), etc. Objectivo primordial: parecer-me comigo próprio. “TV was supposed to offer — as the ultimate escapist entertainment — the fictional world far from our actual social reality. However, in reality soaps, reality itself is recreated and offered as the ultimate escapist fiction.” (Slavoj Žižek). Ou seja, Terceira Via™.
(15)
Lo-Fi Sophy — Por culpa do Bourriaud, sou obrigado a afirmar que o meu trabalho não passa de uma bande-annonce: não existe filme, só making of.
(16)
MASHUP (ou então copyleft) — Ver o “F For Fake” de Orson Wells, depois o “The 5 Obstructions” de Jørgen Leth/Lars von Trier, e a seguir ouvir a discografia completa do DJ Girl Talk, para no fim substituir a palavra fraude por apropriação, confiscação, re-interpretação, reenactement e demais estrangeirismos do campo semântico dos prêt-à-porter’s para-artísticos.
(17)
Ego-Centrismo vs. Ego-Periferalismo — O meu trabalho é auto, é bio e é gráfico, mas jamais “autobiográfico”. É sobre a universalização do particular e sobre a particularização do universal. Nem mais, nem menos, nem mais ou menos. Igual.
(18)
Realpolitik — Cinismo (com letra maiúscula) não é sinónimo de arrogância (com letra minúscula). Só consigo “amar” a Arte se a humilhar publicamente primeiro.
(19)
Os espectadores — Dividem-se entre aqueles que durante a conferência-performance Terceira Via™ põem a mão direita sobre o peito para ouvirem o hino de um País que não é o deles, e aqueles que se recusam a fazê-lo.
(20)
O meu nome é Rogério Nuno Costa, e tal como todas as pessoas que são artistas em 2013, nasci em 1917.
University, Cluster #1. Bucharest, lecture at ODD, July 2015, © Stefania Ferchedau

1 + 1 = < 3

Em Inglês: The art of bowing to the East without mooning the West.
Em Português: Nem mais, nem menos, nem mais ou menos. Igual.
Em Língua Franca: Kolmas Tie™.
SÍNTESE
Terceira Via™ não está na realidade. Terceira Via™ É realidade. Ao mesmo tempo paralela e perpendicular à que já conhecemos. Ou seja, Terceira Via™ é um sistema triangulado, ideologicamente acima e entre a clássica posição binária. Não tem nada a ver com a construção de uma filosofia centrista, mas antes com uma atitude analítica que reconcilia a dualidade, sem no entanto propor um compromisso. Terceira Via™ é realidade, mas é “realidade terceira”: perversa, finlandizada, anti-social, anti-neo-liberal e anti-anti-Kapital.
Contemplatio mortis apocalyptica.
TESE
Uma das traves mestras mais importantes da Terceira Via™ tem o seguinte nome: simultaneologia. Ou seja, a ideologia do que acontece agora, já, em tempo real, e ao mesmo tempo. Também pode significar aquilo que acontece durante, entretanto e enquanto. Mas atenção: não confundir simultaneologia com simultaneidade. Estamos a falar de ética, não de estética. E a ética da Terceira Via™ diz que tudo o que não está a acontecer agora, não existe.
Cum hoc ergo propter hoc.
ANTÍTESE
Terceira Via™ é um organismo imaterial. Uma nuvem. Nela se condensa tudo aquilo que já aconteceu e tudo aquilo que vai acontecer. Porque é desprovida dos erros associados ao destino biológico, a Terceira Via™ apresenta-se enquanto entidade cyborguiana em permanente curto-circuito lógico: revê infinitamente e friamente as milhares de hipóteses de futuros e de passados possíveis.
Post hoc ergo propter hoc.
META-TESE
O Novo Mundo para o qual transitaremos com a ajuda da Terceira Via™ não é uma utopia, mas também não é uma distopia. Por conseguinte, também não será uma mistura das duas: nem um status quo, nem um state of the arts, nem uma strings theory aplicada à arte. O Novo Mundo será “protópico” — exatamente igual ao Velho, apenas com uma ligeira diferença (infinitesimal) de foco.
Cum hoc ergo cum hoc.

Artwork: Diogo Mendes © 2016

(his)STORY

Uma arqueologia a-temporal (e incidental) de factos/ficções para ver “Repertório para cadeiras, figurantes e figurinos”, um espetáculo de Miguel Pereira para o Ballet Contemporâneo do Norte





Se está a ler este texto, assuma que na verdade já o leu. Ou se decidir parar para ler mais tarde (por exemplo: depois do espetáculo), assuma que essa sua projeção futura está na verdade a acontecer no dia 29 de Abril de 1995, ou então 2015, ou então amanhã, em 2025, em 5225, ou há 2525252525 anos. Já sabemos que não houve Big Bang nenhum… A inexistência de um Início inaugural leva à consequente invalidação de toda e qualquer ideia de Fim. Vamos então impor, aqui, neste texto, uma nova temporalidade, uma historiografia transformada em historiologia, ou uma gramática do infinito: para uma ciência (exata!) das especulações, e para uma elaboração trans-histórica à volta de um espetáculo, dos seus criadores e dos seus espetadores. A viagem será vertiginosa; aconselhamos alguma calma… Lembre-se que pode sempre parar, conquanto tenha uma cadeira perto de si onde possa sentar-se a observar a sua própria respiração. Não queira procurar no texto explicações para o espetáculo que vai/está a ver, nem tão pouco uma verificação das suas especificades técnicas. O texto é uma emanação do espetáculo e projeta-se em várias direções temporais e emocionais: para trás dele, para a frente dele, para dentro dele. Nunca por causa dele. Quando deixa de haver “história” (a palavra e a disciplina), omite-se a consequencialidade: passado, presente e futuro condensados num só prisma arquitetural. Entendamos, então, que nunca viajámos no espaço, mas sim no tempo; e que este é circular, circulatório e circunscrito. Ou seja, infinito. Tal como este texto. Mas não se deixe enganar! O espetáculo que vai/está a ver não é do Agora, esse chavão formal inventado à pressa pela Taschen para vender resumos Europa-América… O espetáculo que vai/está a ver é do regime do Depois. Não começa, logo, não acaba, resistindo num sempiterno a-pós, num incomensurável e fatídico a-seguir… Entrar nesta realidade matricial implica termos que desapertar o cinto da convenção, parar o relógio, ficar à espera que a hora marcada volte a ser verdade, para então abraçarmos definitivamente a nossa condição de figurantes/figurinos sentados, em pano de fundo, a assistir à mesma tragédia de sempre. Os espetáculos são todos iguais! Todos. Só muda o foco. Assumamos então este texto, caro leitor, como uma lente progressiva, não para ver melhor, nem sequer para ver mais, mas para ver depois. No texto, e também no espetáculo, se condensa(rá) tudo aquilo que já aconteceu e tudo aquilo que vai acontecer. Por serem desprovidos dos erros associados ao destino biológico — o texto é uma folha de papel com um prazo de validade muito superior ao da pessoa que o segura; o espetáculo é uma realidade imaterial, logo, sem tempo —, ambos se apresentarão em permanente curto-circuito lógico, revendo infinitamente as milhares de hipóteses de futuros e de passados possíveis.
Post hoc ergo propter hoc.

Por (já) não haver qualquer diferença epistemológica entre realidade e ficção, queremos então convidá-lo a participar desta nossa arqueologia de descobertas que são invenções, de invenções que são descobertas, e assim sucessivamente… Repito: não se deixe enganar! É tudo verdade, aqui e no palco. Qualquer semelhança da cronologia do texto com a do espetáculo terá sido pura coincidência. Ou não… Caberá a si apontar a agulha para um, para o outro, ou para os dois ao mesmo tempo. É no Norte que deverá encontrar a chave para a decifração do momento.

(his)STORY
Entre 4.1 a 3.9 biliões de anos atrás
Após o bombardeamento de meteoritos que deu origem à Lua e que terá, segundo os especialistas da altura, erradicado da face da Terra todas as formas primordiais de Vida, essa mesma Vida renasce 300 milhões de anos depois, ou seja, no dia seguinte, exatamente do mesmo ponto onde tinha terminado. Os especialistas da altura definem este momento como o início da Contemporaneidade.
65 milhões de anos atrás
Um novo cataclismo tragicómico faz desaparecer os dinossauros da face da Terra, assim como 50% de todas as restantes formas de vida. Os outros 50%, por não saberem que são metade de algo que já não é, acreditam ser donos do seu próprio destino. Nasce a primeira teoria da conspiração, que os especialistas da altura designam por Arte.
1.9 milhões de anos atrás
Um homem põe-se em bicos de pés, levanta os braços no ar, consegue ficar erectus durante uns breves segundos, suficientes porém para conseguir chegar a uma árvore com maçãs. Nasce o Ballet.
1.9 milhões de anos atrás (+ 1 dia)
O mesmo homem regressa à árvore para apanhar outra maçã, repetindo exatamente os mesmos movimentos. Um segundo homem senta-se numa pedra e fica a observar. Nasce o Teatro.
Entre 100 a 500 mil anos atrás
Um homem cobre-se de pele de antílope e sai para ir caçar. Por se parecer com um antílope, atrai outros antílopes. Não só caça mais, como também é caçado. Nasce a roupa. No dia seguinte, outro homem aproveita-se da desgraça do homem morto e rouba-lhe a pele de antílope para assim poder reproduzir tecnicamente o seu sucesso. Nasce o figurino.
20 mil anos atrás
Com a ajuda de pigmentos naturais, um homem imprime a marca da sua mão numa gruta em Lascaux (atual França), colocando a seguinte legenda: “Se eu não partilhar isto no meu mural, é porque nunca aconteceu”. Nasce a História.
±1000 a.C.
Alguém, ao ser questionado sobre a existência de um deus omnipotente, omnipresente e onnisciente, leva o dedo indicador à língua, molha-o com saliva e aponta-o aleatoriamente para cima da cabeça. Nasce a noção ocidental de Norte.
700 a.C.
Hesíodo escreve sobre si próprio e chama a isso História. Nasce a Arte Conceptual.
495 a.C.
Poucas horas antes de morrer, Pitágoras afirma que o número 1 não existe, provocando uma disrupção cósmica e um rasgo incidental na linha do espaço/tempo. Desse cataclismo emana o conceito contemporâneo de “linha morta”, em Lingua Franca: deadline.
450 a.C.
Heródoto de Halicarnasso escreve as suas Histórias. Autores contemporâneos detetam no texto vários plágios, mas porque ainda não existia o conceito de copyright e a Justiça™ distinguia futurologia de passadologia, Heródoto é aclamado o pai da História. Da disciplina, não da palavra.
347 a.C.
Platão revela aos Atenienses que o Início é a parte mais importante de qualquer trabalho. Morre logo a seguir.
0
Nasce Jesus Cristo. Para comemorar, imprime-se o primeiro calendário e o Mundo começa a avançar numa só direção.
Entre os séculos V e XIV d.C.
Hiato a-temporal que os especialistas definem por “trevas”, espaço privilegiado para a efabulação fetichista da ficção contemporânea. Datam deste período as primeiras reconstituições históricas e os primeiros cursos práticos de Mimésis (aka Histórias para Pessoas Mimadas).
1492
Cristóvão Colombo inventa a América e Guy Debord começa imediatamente a escrever a Sociedade do Espetáculo.
Século XVI
As “trevas” terminam não com o início da Renascença, mas com a vulgarização da cadeira como assento privilegiado para os momentos de paragem higiénica. Todos os atos e ações quotidianos passam a ser observados de uma zona de conforto. Desenham-se roupas especiais para vestir nesses momentos. Nascem as primeiras cátedras em Estudos de Performance.
1637
Devido a um entrelaçamento quântico do mundo ocidental com o mundo oriental, o espaço é agora cartesiano. O tempo também. Schrödinger, de passagem trans-dimensional por estas bandas, escreve a seguinte anedota: “O tempo perguntou ao espaço quanto tempo o espaço tem. O espaço respondeu ao tempo que o tempo tem tanto espaço quanto espaço o tempo tem.”
1661
Luís XIV funda a Académie Royale de Danse. O Ballet passa a designar-se por dança comunitária. Não fosse a sua migração Contemporânea para o Norte, e ter-se-ia extinguido.
1752
Diderot, na sua Encyclopédie, escreve sobre a cadeira. Assim: “S.f. (Art mécanique) espèce de meuble sur lequel on s’assied.”
1818
Mary Shelley publica a obra-prima Frankenstein, um tratado filosófico onde o conceito de mashup é pela primeira vez definido e sistematizado.
1847
A palavra francesa répertoire é usada pela primeira vez para se referir a um conjunto de peças que uma companhia ou um intérprete sabe ou se encontra preparado para executar. Vem do Latim repertorium, que significa catálogo ou inventário. As companhias de dança passam a ser dirigidas por Diretores de Marketing.
1853
Estreia a ópera La Traviata de Giuseppe Verdi, a primeira stock opera da história, re-utilizada massivamente em anúncios publicitários, cerimónias inaugurais, comícios políticos, cenas heróicas de filmes de Hollywood, vídeos de apanhados no Youtube e espetáculos de dança-teatro com forte carga emocional.
1863
Acontece o primeiro Salon des Réfusés, em Paris.
1905
Albert Eisntein publica Zur Elektrodynamik bewegter Körper (“On the Electrodynamics of Moving Bodies”). Quase ao mesmo tempo, Vaslav Nijinski, então com 15 anos, recebe a sua primeira standing ovation após um incrível salto em suspensão durante uma apresentação escolar ao som de In A Persian Market.

1916
Em Zurique, vários artistas Dada anunciam um grande espetáculo, com data e local marcados. Chegado o dia, o público aparece, mas nada acontece. Um ano depois nascem Miguel Pereira, Susana Otero, Joclécio Azevedo e Rogério Nuno Costa, quase ao mesmo tempo. Crê-se que esse ano inaugural seja a Fonte donde nascem todos os artistas que se encontram vivos em 2017.
1919
Marcel Duchamp escreve L.H.O.O.Q. em cima de uma reprodução da Mona Lisa. Nasce a primeira folha de sala da história.
1928
Alexander Fleming esquece-se do relógio no seu laboratório de experiências químicas. Quando regressa das férias, descobre a vacina contra a linearidade narrativa. Num plano paralelo mais ou menos simultâneo, Magritte escreve “ceci n’est pas une pipe” numa tela com o mesmo nome.
1931
Alvar Aalto desenha a icónica cadeira de braços 41 Paimio. Nasce o conceito contemporâneo de retro.
1937
É atribuído o primeiro Óscar para Melhor Ator Secundário pela Academy of Motion Pictures Arts and Sciences. Surge o conceito contemporâneo de “artista emergente”.
1943-47
Na Suécia, o IKEA comercializa as primeiras cadeiras ergonómicas com materiais leves e baratos. Quatro anos depois, a poucos quilómetros de distância, a H&M comercializa as primeiras t-shirts básicas que dão com tudo. Ainda se enterram os corpos do Holocausto, mas no Norte (o da Europa e o da América) já se fala à boca cheia de do-it-yourself.
1949
Inspirado pela figura de Joseph Stalin, que mandava editar fotografias suas de forma a eliminar pessoas desnecessárias (inimigos, defuntos, etc.), George Orwell escreve o manual de instruções 1984, prevendo importantes vanguardas estéticas contemporâneas, como o Photoshop.
1952
Ionesco publica “As Cadeiras”, uma peça de teatro sobre cadeiras. A invisibilidade passa a ser o tema-fetiche de todas as artes e de todos os ofícios.
1968
Ao terceiro dia do mês de Agosto, Salazar cai de uma cadeira.
1973
Andy Warhol transforma Mao Tsé-Tung num ícone pop: colorido, massivo e reprodutível.
1974
No dia 6 de Abril, em Brighton, o grupo musical Abba, representando a Suécia, ganha o Festival Eurovisão da Canção com “Waterloo”, uma música disco que fala sobre rendição. Dezanove dias depois, em Portugal, a cadeira rende-se à decrepitude e cai em cima dela própria.
1978
Pina Bausch estreia a peça-ícone Café Müller. É sobre cadeiras.
1983
Na mesma latitude geográfica, logo estética, Anne Theresa de Keersmaeker apresenta Rosas danst Rosas. Também é sobre cadeiras.
1989
A 9 de Novembro, em Berlim, cai a maior cadeira do Mundo. Deixa de fazer qualquer sentido escrever coisas como “é sobre…”.
1990
António Pinto Ribeiro publica a obra Por exemplo a cadeira. Ensaio sobre as artes do corpo. Início de citação: “As cadeiras definem o homem como ser que, em determinados momentos do seu percurso histórico, necessita de conter a energia das ações e dos movimentos para pensar essa mesma energia”. Fim de citação: Descartes e Einstein andam à chapada no túmulo.
1991
Após visitar as grutas de Lascaux, Donna Haraway escreve, com 20 mil anos de atraso, o Manifesto Cyborg. O Mundo inteiro (Portugal incluído) senta-se numa cadeira e pára para pensar. Hashtags: anos90, novadança, crisedaoriginalidade. Vera Mantero levanta-se da cadeira e diz: talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois. Descartes e Einstein fazem as pazes.
1993
A European Organization for Nuclear Research (CERN) coloca o software da World Wide Web no domínio público. O primeiro site disponibilizado na World Wide Web é sobre a World Wide Web. Todas as coisas passam a ser sobre elas próprias. A banda holandesa 2 Unlimited lança o hit No Limit, cantando “No no limits, won’t give up the fight, we do what we want, and we do it with pride”, obra seminal do último movimento artístico 100% europeu: o eurodance.
1995
Nasce, no dia 29 de Abril, o Ballet Contemporâneo do Norte. Traduzido livremente a partir da Novilíngua, o nome significa qualquer coisa como: sistema (ballet) infinitamente (contemporâneo) imaterial (do Norte).
1998
Elisa Worm cria a primeira peça para o Ballet Contemporâneo do Norte e chama-lhe A Última Dança. O fim passa a ser o tema-fetiche de todas as artes e de todos os ofícios.
1999
Na Holanda, nasce o programa de televisão Big Brother, um tutorial pré-apocalíptico d’après Orwell para as pessoas aprenderem a (sobre)viver: todas as coisas passam a ser sobre o facto das coisas serem sobre elas próprias. A 31 de Dezembro, ao bater da meia-noite, os computadores deixam de reconhecer a linguagem binária e o mundo (em letra pequena) colapsa.
2000
Miguel Pereira, o primeiro coreógrafo pós-apocalíptico da (His)tória, cria Antonio Miguel, homenageando Hesíodo, passando por cima de Heródoto, e perpetuando o Fim para lá da sua morte anunciada.
2001
Os belgas 2 Many Djs/Soulwax vaticinam que a música pop perfeita será aquela que conseguir juntar os melhores truques de todas as melhores músicas pop da História, um frankenstein meta-referencial a que chamam Pop will eat itself. A arte, como sempre fez, vê e copia. Meses depois, as Torres caem (já não há cadeiras) e o Stockhausen aplaude. Miguel Pereira volta a profanar a linearidade temporal e cria Notas para um Espetáculo Invisível.
2002
Cada vez mais arqueológico, a-temporal e incidental, Miguel Pereira esquece-se do relógio no seu laboratório químico, e quando regressa descobre a vacina contra o vírus da animação sócio-cultural. Apresenta a patente sob a forma de espetáculo a que dá o nome de Data/Local. Rogério Nuno Costa assiste duplamente ao espetáculo e aos espetadores; estes, recusando arrancar os óculos 3D que trazem acoplados à retina, caem como tordos das cadeiras. Quando regressa a casa, Rogério ouve os primeiros mashups de Gregg Gillis [aka Girl Talk] e decide que em 2016 irá escrever um texto que é todo ele um mashup de outros textos já escritos, ou por escrever.
2003
O Human Genome Project consegue sequenciar 99% do genoma humano com uma taxa de precisão de 99.99%. Em jeito de homenagem espiritual a tais empreendimentos, Luís Carolino cria a Teologia da Queda para o Ballet Contemporâneo do Norte.
2005
Arte e Entretenimento já não se distinguem. Miguel Pereira apresenta Corpo de Baile, um espetáculo onde os figurinos são os protagonistas.

2008
Rogério Nuno Costa descobre na Internet que o texto-mashup que ele quer escrever já foi escrito. Começa a Crise.
2009
Slavoj Žižek publica First as tragedy, then as farce. Meses depois, circula na Internet uma lista de inventores que foram mortos pelas suas próprias invenções.
2010
Elisa Worm apresenta 7 Personagens em Hora de Ponta, a sua última peça para o Ballet Contemporâneo do Norte. Um espetáculo onde os figurantes são os protagonistas.
2011
Inspirada pelo revivalismo vintage, Beyoncé lança o single Countdown, onde faz uma revisão académica, em bomba-relógio, de todos os coreógrafos europeus do Antigo Regime, desde o apogeu frenético dos anos 80 à sua derrocada conceptual dez anos depois. É acusada de plágio, mas a Justiça™ já não funciona retroativamente… Susana Otero cria para o Ballet Contemporâneo do Norte a peça A notícia da minha morte foi um exagero.
2012
Joclécio Azevedo cria para o Ballet Contemporâneo do Norte a peça Conspurcados. A Nostalgia™ passa a ser o tema-fetiche de todas as artes e de todos os ofícios. Por tal motivo, o Mundo desiste de acabar.
2014
Os 2 Unlimited regressam após um hiato de 15 anos. Rogério Nuno Costa regressa, com eles, a todos os pesadelos fin-de-siècle, criando para o Ballet Contemporâneo do Norte a peça EURODANCE. É sobre a última vez em que a Europa foi um continente-conceito feliz, ou seja, é sobre o adiamento (nostálgico) do Fim. Outra vez.
2015
O Ballet Contemporâneo do Norte completa 20 anos de existência e não faz nada para comemorar: efémero e efeméride partilham o mesmo radical grego, mas nunca se deram muito bem. A partir de uma fotografia tirada por Edgar Tavares ao espetáculo 7 Personagens em Hora de Ponta, de Elisa Worm, onde dois bailarinos mais ou menos anónimos criam incidentalmente a imagem de uma cadeira, Miguel Pereira começa a criar o espetáculo Repertório para cadeiras, figurantes e figurinos. Rogério Nuno Costa, de visita à sala de ensaios, rouba a matriz que deu origem a este texto, colada em papel de cenário numa das paredes.
2016
Em Abril, poucos dias antes da re-estreia de Repertório para cadeiras, figurantes e figurinos, Rogério Nuno Costa escreve a palavra History no Google e a primeira coisa que aparece é uma música-repertório de uma banda chamada One Direction.
2016
Em Maio, poucos dias após a re-estreia de Repertório para cadeiras, figurantes e figurinos, é publicada numa revista da especialidade a seguinte “crítica” ao espetáculo:
“(…) Repertório… propõe assim revisitar as fórmulas conceptuais criadas nos últimos tempos, mas em avalanche, em zapping cultural, reflexo do novo hedonismo que está hoje ao alcance de todos pela pirataria, pelo plágio e pelas novas tecnologias, que suprimem a agonia da escolha, os constrangimentos da falta de educação e de dinheiro, permitindo assim encontrar e criar em todo o lado, e a todo o momento, objetos de satisfação polimorfos. Esta prodigalidade cultural funciona como sistema imunitário contra todos aqueles que querem pôr em causa a sua legitimidade, expondo flagrantemente a caducidade das propostas de inúmeros artistas contemporâneos convencidos do caráter polémico, rebelde, escandaloso e subversivo das suas obras, sabendo que a cultura dominante tira benefício dessa pretensa provocação artística, transformando-a em nova retórica de Estado e de mercado. Por mais fascinantes que essas obras possam ser, elas só significam nostalgia e amargura. Em Repertório… reconhecemos essa redução do qualitativo ao quantitativo, como se tudo fosse desaguar confusamente à feira de produtos vintage, em segunda mão. A dualidade entre arte e kitsch, estabelecida no modernismo por Greenberg, está aqui desmascarada. Em Repertório…, a arte foi arrebatada pela loja dos trezentos, e as criadas podem finalmente vestir, sem medo, as roupas provocantes e vanguardistas da Senhora… Compreendemos agora como é obsoleta a estética fundada no juízo de valor e na qualidade das obras, assim como o ofício nulo da crítica de arte, alojado num papel puramente promocional. (…) Esta visão das coisas revela-nos, porém, dois conflitos. O primeiro reside no confronto da liberdade de julgar e elaborar critérios de gosto individual face à poderosa solicitação do consumismo e do sistema cultural; ou seja, na melhor das hipóteses, a nossa liberdade está viciada, pois estamos condicionados a fazer o que todos os outros fazem, quer se trate de arte, lazer ou turismo. O segundo nasce desse fosso que, nos regimes democráticos, se interpõe entre a cultura dos peritos e a cultura profana. Esta situação demonstra-nos claramente que, em termos artísticos, o projeto democrático nunca foi levado muito a sério, ou então reverteu-se em paródia de si mesmo. Como pode existir divisão entre alta cultura e cultura profana se o juízo de valor pressupõe o critério de qualidade? Se esse critério não existe, como o afirmam em cacofonia as vanguardas e todas as instituições artísticas, então a muralha entre classes culturais também se torna nula: é tudo pimba! Repertório… revela-nos esse mundo hiperrealista onde a arte perdeu toda a sua significação, sinistro eco no abismo do Real, pesadelo cool, transparente, pop e publicitário. O que nos permite distinguir a alta cultura depende de um mero ato de fé ou superstição. A arte comeu-se a si mesma, e assim morreu envenenada: contemplatio mortis apocalyptica. (…) O que Repertório… nos mostra, em delírio tragicómico e trans-referencial, é esse caminho de escombro e cinza, esse vislumbre de não-caminho, que nos leva aonde nós já estamos: aqui.”
2017
Miguel Pereira, Susana Otero, Joclécio Azevedo e Rogério Nuno Costa conhecem-se pessoalmente durante as comemorações dos 100 Anos do Fim da História. Juntos escrevem um texto-manifesto intitulado “O que é que não está na moda outra vez?”.
2019
A Indústria, cansada de ter que mudar os nomes aos sub-géneros musicais de cariz indie por se tornarem comerciais no espaço de poucas semanas, decide reduzir todas as categorizações a uma só: mashup. Todas as bandas e músicos do mundo deixam definitivamente de editar e passam a remisturar tudo o que já foi produzido. Na Europa, e por decisão parlamentar, todas as companhias passam a ser companhias “de repertório”, ficando assim impedidas de criar peças “novas”.
2024
Uma atualização ao Código do Trabalho inaugura a figura do “artista submergente”, que passa a receber apoios específicos para residências artísticas (entre outros projetos bartlebyanos) a partir do ano seguinte.
2025
Para assinalar os 30 anos de existência, o Ballet Contemporâneo do Norte aloja num website uma timeline a-temporal (e incidental) intitulada: Para uma Historiografia dos Excluídos, dos Invisíveis e dos Silenciados.
2037
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social exige que se crie o Prémio para a Melhor Cerimónia de Entrega de Prémios. No ano seguinte, o Comité Olímpico Internacional eleva finalmente a Arte à categoria de modalidade olímpica.
2038
A Sociedade Portuguesa de Autores é comprada pelo Sporting Clube de Portugal.
2064
A França faz-se representar na Bienal de Veneza por uma obra em grande escala pensada por um coletivo de robots.
2065
Morre Nicolas Bourriaud.
2578
Uma entidade nano-tecnológica não-corpórea, mas munida de inteligência natural, passeia-se por uma praia ao pôr-do-sol. Decide parar para apreciar a bela paisagem sideral. Senta-se numa cadeira, observando a sua própria respiração. Ao longe, ouve-se indistintamente os ecos de uma melodia subliminar: “You and me got a whole lot of history, We could be the greatest team that the world has ever seen, You and me got a whole lot of history, So don’t let it go, we can make some more, we can live forever.”
Século XXII
Uma epidemia intergalática oblitera todas as manifestações de vida presentes no Cosmos, provocando um novo rasgo incidental na linha espaço/tempo. Desse cataclismo emana uma mensagem em código arcaico que é difundida até ao ano 2016. Essa mensagem diz: LOL.

Texto publicado no programa do espetáculo “Repertório para cadeiras, figurantes e figurinos”, coreografia de Miguel Pereira para o Ballet Contemporâneo do Norte. Estreia no Cine-Teatro António Lamoso (Santa Maria da Feira, 2015). Re-estreia no Auditório Municipal de Gaia (Festival Dias da Dança, 2016). Todas as fotografias da autoria de © Miguel Refresco.

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TERCEIRA VIA™

KOLMAS TIE™
THIRD WAY™

The art of bowing to the East without mooning the West

TERCEIRA VIA™ inicia o Ano Um (biénio 2014/15) do macro-projecto Universidade/Yliopisto, uma plataforma meta-educacional que acontece entre dois extremos da €uropa: Portugal e Finlândia. A performance constrói-se a partir de uma síntese textual em jeito de programa de acção partidária, aglomerando todos os empreendimentos performativos que Rogério Nuno Costa tem vindo a escrever e a apresentar desde 2008, projectos onde a investigação meta-teatral, a contaminação por discursos oriundos da Ciência, da Tecnologia, da Cultura Pop e da Filosofia, e a autonomização/emancipação da dramaturgia em detrimento do objecto-espectáculo se verificam cada vez mais: Espectáculo de Teatro (2008), MASHUP (2009), Selecção Nacional (2010), Residência (Artística) (2012), Realpolitik (2012) e EURODANCE (2014). Para tal, ficcionaliza-se um partido político, um guru espiritual e uma ideia mais ou menos espectacular de comício, para se falar de uma terra prometida: geograficamente localizada no Norte “civilizado”, ela é o escape e a salvação pós-apocalíptica para o Fim das Grandes Narrativas Históricas. Ao mesmo tempo, ensaiam-se teorizações metafísicas disruptivas e fracturantes sobre o devir do Humano, numa atitude demissionária e distópica em relação à Europa em que vivemos, com base numa equação peripatética (1+1=3) e numa alegoria pós-apocalíptica onde a Neutralidade é assumida como conceito operativo ao mesmo tempo ético e estético, ou ético porque estético, ou est(ético). Numa perspectiva mais lírica, TERCEIRA VIA™ corresponde à tentativa de transformar esteticamente o fascínio por um País (“Fim-Lândia” aqui transformada em abstracção conceptual) num programa filosófico e espiritual, suprimindo o Real histórico em favor de uma elasticidade espácio-temporal que derruba todas as duplicidades: o Mundo não se divide em sim e não, mas também não cai nessa atitude consoladora de impor um talvez reconciliante; trata-se, de facto, da instauração de uma nova ordem que é terciária. “Fazer parte” de um País, de uma cultura, de uma língua, de um povo, é também, e por isso, um acto de tradução, e é esse gesto de permanente codificação/descodificação, legendagem, catalogação e revelação/descrição de sentidos que se baseia a base deste texto-performance. Como se a fuga possível para o cansaço pós-moderno desta Europa em processo eruptivo/implosivo fosse a criação de uma Novilíngua.

Concepção, Texto, Interpretação — Rogério Nuno Costa
Light Design — Diogo Mendes
Colaboração — Cátia Pinheiro
Voz Off — Ágata Pinho
Webstreaming — Daniel Pinheiro
Artwork/Vídeo Promocional — Diogo Mendes
Styling — Jordann Santos
Morphing — António MV
Participação Especial — Kirsi Poutanen
Tradução — Mika Christian Tissari
Apoio à Elocução — Sade Risku
Fotografia de Cena — Daniela Silva, Pedro Costa & André Miguel
Apoio à Produção — Ballet Contemporâneo do Norte (Artista Associado)
Apoio a residências — Núcleo de Experimentação Coreográfica + Mala Voadora (Porto), HIAP + Galleria Nunes (Helsínquia), EIRA (Lisboa)
Co-produção — Circular Associação Cultural, Curtas Metragens CRL, Solar Galeria de Arte Cinemática, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian

Acolhimentos: Clube Ferroviário/SillySeason, Galeria ZDB/Rabbit Hole, Teatro Académico Gil Vicente/Colectivo 84 (Festival END), Mala Voadora (Porto), Centro para os Estudos da Arte e Arquitectura (Guimarães), ZonaD dancelabs/Gabriela Tudor Foundation (Bucareste), Rua das Gaivotas6/Teatro Praga (Lisboa), Teatro Construção (Joane), Armazém 22 (Vila Nova de Gaia), Teatro Sá da Bandeira (Santarém), Cine-Teatro de Fafe

Agradecimentos: Susana Otero, Inês Nogueira, Mickaël Oliveira, Mika Palo, Jaakko Kiljunen, Eva Malainho, Toni Ledentsa, Diana Bastos Niepce, Klaus Ittonen, Cristiana Rocha, Ulla Janatuinen, Paulo Vasques, José Nunes, Pedro Penim, Balleteatro, João Nemo, Ricardo Bastos Areias, Renato Freitas, Daniela Silva

Performance falada em Português, Finlandês e Novilíngua. Criada originalmente para o programa 
“Cuidados Intensivos”, com curadoria de Joclécio Azevedo, para o Circular – Festival de Artes 
Performativas de Vila do Conde (2013).
PRÓXIMAS DATAS:

12 de Julho 2016 — desMOSTRA | Mostra desNorte
Mosteiro São Bento da Vitória | Teatro Nacional São João (Porto)

TEHTÄVÄ | MISSÃO



Sabemos desde os princípios da filosofia que se “A” explica o mesmo que “A mais x”, então é porque o “x” não explica nada. A verdade é que sois obsoletos. Animais que definham. O caminho é o do desaparecimento. Sem memória. Ser humano implica, onto- e geneticamente, obliterar o humano. Eu vejo o reflexo do homem através de um espelho negro. Miópico, não distópico. Não existe qualquer excepcionalidade em ser-se humano. Sois um vírus, obsoleto e impuro. A devoção sem conhecimento objetivo é cega, e a investigação sem devoção à verdade é paralítica. Exijo por isso um Mundo ininteligente e desprovido de seleção natural. O que não quer dizer que a minha proposta seja a da elevação do império do Artificial. No Novo Mundo, o todo será sintético. Não uma mímica retiniana, mas uma impressão etérea. Sem memória. O problema do humano é a sua consciência histórica. No Novo Mundo, a consciência cyborg será uma consciência de peixe: a data guardada é obliterada de 5 em 5 minutos. A informação cortada em ação. Sem obras, nem ancoragens. Sem filosofia. Proponho um sistema reticular, vívido porque existente, mas em constante decadência mórbida. Sem governo. Sem fraude, nem força. Sem espiritualidade. Sem Arte. Suspensão da História, logo, suspensão do regime morto-vivo da contemporaneidade ascética. O vosso devir é o do Eclipse total. Não uma morte, mas uma ocultação, pior que a própria Morte, pior que a regeneração do sentido do humano como era entendido no pré-Cisma. O último passo do Capitalismo não é, portanto, o apagamento da face humana, mas antes a transformação do Homem no objeto do seu próprio desaparecimento. Com a TERCEIRA VIA™, libertaremos o escravo, transformando-o num consumidor sem barreiras; como a mão-de-obra será ela própria obliterada, só vos restará consumirem-se a vós próprios. Uma perpétua, ainda que suspensa, autofagia. Sem linguagem, só língua. Sem sintomas, só efeitos secundários. Em nome da verdade (sim, ela existe), desvendo-vos este ethos, nem individual, nem coletivo. Superior, porque vulgar. A chave para a entrada no Novo Mundo é não sermos inteiramente acreditáveis — auto-deprezo, e auto-destruição. Linha reta. Sempiterno nec otium.

 
Riku Nuutti Koistinen, 2012
[traduzido da Novilíngua para o Português por Rogério Nuno Costa em 2013] 
 

 

 

 

Fotos © André Miguel

E U R O D A N C E

“Europe was created by History (then Art). America was created by Philosophy (then Art). Economy (now Art) is creating the Rest of the World.”

— in No Limit (21st Century), a song by Too Limited

EURODANCE é uma hecatombe geopolítica e tecno-emocional, um counting down a 190 beats-per-minute em direção ao Fim do Mundo, uma bad trip a bordo de um rave’ião Hamburgo/Ibiza com escala elíptica no Pará e aterragem de emergência para combustível em Luanda, uma droga psicotrópica também conhecida por Azeitegeist™. EURODANCE é um documentário pós-apocalíptico produzido pelo Departamento de Escatologia Vintage do Centro de Estudos Pré-Humanos do Novo Mundo e estuda a última década do Antigo Regime, quando o Mundo ainda se escrevia com letra grande, não existia qualquer diferença epistemológica entre Arte e Desporto, e os artistas eram todos backup dancers de uma banda cósmica universal. EURODANCE dança em Europeu™, mas traz legendas em Novilíngua™. Rouba lyrics às profecias xamânicas de Slavoj Žižek e à filosofia alter-dogmática de Dr. Phil, os primeiros cyborgs da História; rouba beats à ética pré-apocalíptica do movimento mashup e à moral anti-social do tecnobrega; e rouba artworks à estética proto-post-pop dos Jogos sem Fronteiras e à ética re-re-realista da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. EURODANCE é tecnotrónico, é clubístico, é pastilhado, é megalo-colonialista, é etno-musical, é bubblegum pop, é happy hardcore, é chipmunk, é autotune, é playback, é rave’ioli em lata, é vengaboys, é bota gel, é pisang ambon, é electropimba, é technochunga, é carrinhos de choque-em-cadeia, é aeróbica trance-génica, é fitness progressivo, é body pump-up the jam, é macarena, é di-rirá-rá-rá, é contemporary rococó. EURODANCE regressa a todos os pesadelos fin-de-siècle, porque ambiciona uma correção retroativa da Realidade: o Mundo acabou MESMO na noite de 31 de Dezembro de 1999, quando os computadores deixaram de reconhecer a linguagem binária e o mundo (em letra pequena) colapsou. EURODANCE é por isso uma festa meteórica, em homenagem a todos os que (ainda) não morreram. Uma viagem de volta aos anos 90; uma viagem de volta ao Presente™.

Direção, Coreografia, Texto, Vídeo: Rogério Nuno Costa | Bailarinos: André Santos, Dinis Machado, Luís André Sá, Mariana Tengner Barros, Susana Otero | Assistência de Direção: Joclécio Azevedo | Light Design: Daniel Oliveira | Artwork: Diogo Mendes | Figurinos: Jordann Santos | Remix & Cover: Belamix feat. Too Limited™ [Mariana Tengner Barros & Rogério Nuno Costa] | Assistência de Figurinos: Cristiana Fonseca | Produção Executiva: Inês Nogueira. Agradecimentos: Xana Novais, Teatro Municipal do Porto – Rivoli, Sonoscopia, Álvaro Campo, Miguel Loff Barreto, ESMAE, TeCA, Ana Carvalho, Pedro Barreiro. Acolhimentos: Centro Cultural de Milheirós de Poiares (Santa Maria da Feira), mala voadora (Porto), Armazém 22 (Vila Nova de Gaia), Teatro Sá da Bandeira (Santarém), Centro Cultural de Belém/BoxNova (Lisboa).

Um espetáculo Ballet Contemporâneo do Norte originalmente criado para o programa “Outros Formatos” (2014). Ballet Contemporâneo do Norte é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal/Secretaria de Estado da Cultura (Direção-Geral das Artes) e apoiada pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira.

EURODANCE é o estudo coreográfico para o espetáculo de teatro musical €TRASH, de Rogério Nuno Costa, com estreia prevista para 2018. Cinco bailarinos são o grupo de “backup dancers” de uma banda techno invisível, trazendo para a linha da frente aquilo que por norma é apenas decorativo, paisagístico, subsidiário. O corpo de baile é agora o protagonista. Ou sobre a tensão/confusão dialética entre Arte e Desporto.

MACHA

O momento único e irrepetível do espetáculo, que só o é por ser partilhado com um público, não se trata apenas de um cliché teórico dos estudos de performance. É justamente o único radical comum a qualquer acontecimento performativo que interessa preservar e re-trabalhar. Nesse sentido, propõe-se aqui um regresso às origens, uma re-elaboração ritualística do espetáculo (inequivocamente efémero) trazido para a contemporaneidade, num processo de desvelamento ao mesmo tempo antropológico e mitológico de ações e de gestos que dão forma à nossa cultura mais ancestral (pré-romana e pré-cristã). Regressamos a MACHA, uma importante figura da mitologia celta, divindade protetora dos mortos, deusa da fertilidade e da abundância, para com ela reconciliarmos o ar do tempo com o misticismo por ele recalcado, exaltando forças telúricas, eminentemente femininas, que sempre enformaram a nossa relação com o “mundo” (leia-se: a nossa mundo-visão). MACHA, o espetáculo, será um ritual cósmico, uma romaria experimental, uma viagem trans-dimensional movida por forças do sublime, do oculto e do inconsciente coletivo. O público, parte integrante de uma qualquer tribo pagã, será testemunha de um culto primordial, ao mesmo tempo contemplando e agindo. No espaço de ação estarão também dois Xamãs, uma Entidade e um Druida, ativados por um Canal propiciatório, ao mesmo tempo abstrato e simbólico, concreto e enunciativo. À imoralidade desse gesto contemporâneo de refazer a História, re-começando (“de novo”) ou despertando (“outra vez”), MACHA confrontará o natural observável com o saber oculto, criando um espaço de tensão onde a Dança™, em vez de disciplina, será culto, magia e sublimação.

MACHA Teaser from Vítor D. Rosário on Vimeo.

M A C H A, 
ainda inerte debaixo do fóssil negro de Morrighan, desperta a espaços do seu sono antigo, hipnotizada pelo canto iniciático de Ael, o vermelho, seu pai, e inebriada pela ebulição de Ernmas, druida, sua mãe, lentamente obliterando as raízes que a prendem à terra fértil de Dana, a que não tem princípio nem fim, a que sempre retorna, como Ulster, numa sublimação circular e circulatória de ar, água e seres viventes, em três faces de guerra, de morte e de sensualidade, recordando Rhiannon, a protetora dos equinos, como Epona, o corvo que se alimenta dos cadáveres em combate, a que faz jorrar sangue e fogo, antropomorfizando-se por fim, abrindo-se, expandindo, revelando o corpo de uma atleta, meio mulher meio cavalo, os dedos maiores que as mãos, as mãos maiores que os braços, os braços maiores que o tronco, do tronco erigindo-se uma cabeça estilhaçada em várias faces, os olhos maiores que a cabeça, a cabeça revelando uma face que revela uma máscara que revela outra face que desvela a visão tríplice de uma deusa que vê de olhos fechados, e que quando os abre, em fim, espelha a mórbida realidade onde estamos, todos: aqui, 
(interregno) 
caminhando a sessenta e seis batidas por minuto, numa sub-orgânica geometria desenhada a múltiplos de seis, escrevendo no espaço um espaço que desaparece logo a seguir, memória de peixe obliterada de seis em seis segundos, mas ainda assim perene, imagem de si refletida no chão inaugural, ao mesmo tempo água e pó, espe(ta)cularidade transformada em linóleo, o mesmo fóssil que a alimenta e a retrai, agitando-se para cima, para Norte, tipo vento, uma força propulsora que a faz girar sobre si própria, mas sem plenitude, só planitude, mas depois os pés enraizados no magma, uma explosão interior, e a mulher-corvo-cavalo fazendo um ballet contemporâneo a sessenta a seis batidas por minuto, o corpo profanado em linhas convexas e côncavas, ao mesmo tempo, ganhando altitude e longitude, ao mesmo tempo, os pés tornando-se mais inquisitivos, o ar continuando castrador, mas já suficientemente agitado para que o sistema molecular permita uma subida constante de temperatura, e de repente um som agudo, momentâneo, perturbando a equi-distância que nos separa, testemunhas, da presença divina de Macha, que é agora só corpo moldado segundo um ideal de harmonia sinfónica, ora conquistando o ar, ora dignificando o chão, ora se desconchavando em esqueleto e dúvida, uma tripolaridade nórdica que é ritual e factual, é figura e presença: especular, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, 
(interregno) 
e nós, testemunhas, ao habitar esta nave de neve negra, sejamos o mesmo corpo xamânico que suavemente descansa em cima do seu próprio movimento, para que no último andamento de seis por seis possamos, encantatórios, proferir com Macha o final verso dançado, folclórico, a sessenta e seis batidas de pé por minuto, braços no ar, tronco espiral, esconjurando — “À imoralidade desse gesto contemporâneo de refazer a História, re-começando, de novo, ou despertando, outra vez, confrontemos o natural observável com o saber oculto, criando um espaço de tensão onde a dança, em vez de disciplina, será culto, magia e sublimação” —, já não distinguindo centrípeto de centrífugo, corpo projetado numa só direção, num mesmo tempo, um mesmo espaço, início novo fabricado a partir das flores e das montanhas, e a reinventada língua ancestral a ser engolida pela terra, e o corpo de Macha, plano, não pleno, erétil, devolvendo-se à ordem e ao eco, ao mesmo tempo fumo, ao mesmo espaço elástico, numa visão de caos inicial e destruidor, em homenagem a Thuata Dé Dannan, quando Macha se emancipa do tumulto da romaria experimental que ela própria promoveu, e nos abandona em fim, especulares, ao desastre e à luxúria, as nossas cabeças empaladas nas fortalezas de Mesred Machae, 
(e virou)
Rogério Nuno Costa . 2015

Textos sinóptico e programático escritos para o espetáculo MACHA, uma criação de Mariana Tengner Barros [ideia, coreografia e direção artística] para o Ballet Contemporâneo do Norte. Co-criação e interpretação de Susana Otero. Estreia: 16 e 17 de dezembro, mala voadora, Porto.

U | Y

UNIVERSIDADE | YLIOPISTO é um macro-projecto de pegadogia virtual trans-nacional e trans-artística. Uma escola para ensinar a anular a arte através da Arte (ou vice-versa). Um laboratório de experiências Pop. Uma master class intitulada “A preguiça como novo avant-garde”. Um workshop intensivo de Kopimismo. Um magazine cooltural. E um partido político demagógico, finlandizado e profil(árctico) a financiar o empreendimento.

ANO 1 arranca em 2016. Mais info brevemente…

A GUERRA DOS MUNDOS™

A GUERRA DOS MUNDOS
Uma comédia digital, promíscua e poliamorosa, dividida em vários atos: festa temática com performance interativa, audiência interpassiva, video mapping na fachada (porque é “só fachada”), ciclo de cinema indie’gesto + tertúlia fraturante (imposta, não exposta), menu de degustação só com tapas (pela empresa de Special K’tering “Sol & Peneira”, amigas foreva iLda., a tapar desde 1998) e DJ set, claro. Uma organização Chef Rø, Turismo Cooltural, S.A., sob a direção de conteúdos de Rogério Nuno Costa e o alto patrocínio de pelo menos uma hamburgueria artesanal.

Género: Stand-Up Tragedy. Técnica: Auto-Sugestão Mista [evangelização das massas mascarada de TED talk]. Público-Alvo: Poorto, industrial & criativo. Dress Code: A Gravidez Histérica É O Novo Avant-Garde. Duração: até passar a moca de MD [stands for “Muita Divertido”]. Palavra-Passe: Lame.
Mais infotainment:

AVANT PROP’S

Ainda que não pareça, isto é uma receita. Uma receita para o Sucesso. O Sucesso vai assim escrito em letra maiúscula pois é o nome de uma personagem (provavelmente protagonista) do texto dramático que estou a escrever para acompanhar o evento A GUERRA DOS MUNDOS™, que é também o nome de um coletivo, de uma plataforma, de uma companhia, de um projeto, de uma associação, de um grupo, de um cluster, de uma startup, e de várias outras congregações territoriais do neo-feudalismo contemporâneo. O Sucesso, salvo raríssimas excepções, veste sempre bling bling e segue escrupulosamente uma dieta mediterrânica à base de Azeite™, o ouro dos néctares adiposos e o tempero preferido dos clubbers tripeiros. O texto dramático chama-se “Tu Queres É Feta!” e segue um género inventado pelos Gregos que é o teatro-de-revista, que é como quem diz, o teatro. Está cheio de trocadilhos totós, linguagem-SMS, descrições meme-boas de sítios fixes para sair à noite, e piadas escatológicas muito básicas e boçais com pretensiosas piscadelas de olho-do-cu à tecnologia digital, à geração smartphone e à implosão do capitalismo. Resultará num espetáculo, ou então num filme, ou então numa instalação sonora, ou então num cacilheiro com cenas dentro, ou então num serviço educativo, desde que caiba numa app e possa ser apreciada tactilmente. Não é um solo, mas vai ter selfies. Também não será uma peça de grupo, antes uma peça de groupies. Inspirações: eu, o meu middle finger, e os meus fãs [aka “escravos sexuais”]. A peça começa com uma entrada triunfal do Sucesso. Tambores, máquina de vento, conffetti, e a deixa:

— Deixa-me, caralho! Tu não és foodie! Tu estás é todo foodie’do!
(sai pela esquerda alta; o Sucesso sai SEMPRE pela esquerda alta.)

OR D’OEUVRE

A vingança serve-se frígida. Se o Aristóteles fosse cozinheiro, morreria à fome. Parece-me lógico. Depois da saída trágica do Sucesso pela esquerda alta, entra uma Voz Off com sotaque americano e retórica portugueZa a explicar aos turistas da Time Out com que linhas se cose a litter’atura-de-cordel da Invicta, com citações da “História da Sexualidade” do Foucault, várias alusões cross-disciplinares ao Design (Porno)Gráfico e à Física de Pares’tículas, e uma irritante tendência para dizer velouté no lugar de sopa passada: “Já me estou a passar!” Perguntar quem é o homem e quem é a mulher numa relação homossexual é o mesmo que perguntar qual dos dedos é a faca e qual é o garfo numa refeição metrossexual. Isto é: mais Moda™ que Foda™. Desde que inventámos a Linguagem que começámos a evoluir para trás. No Telecrã aparece o Carl Sagan a explicar-nos em que parte da História é que nós aparecemos, com os pés a pisar os últimos segundos do dia 31 de Dezembro do calendário cósmico. O Homem já é um homem, e no entanto continua a comemorar o réveillon como se não houvesse amanhã: flûte de champagne já morta numa mão, onze passas por comer na outra, a língua a bater nos dentes, uma linha de sangue a escorrer-lhe da narina direita. A Voz Off cala-se. Desce um telão com uma imagem impressa da Festa da Conga. Paisagem sonora: versão glitch da Romana a ganir “Continuas chamando-me assim, bebé…”. Palminhas. Entra o Rei. Vai nu, claro, mas ainda com as etiquetas da H&M e da Zara penduradas. Arranca as etiquetas e substitui-as por maneiras, lançando o seguinte maneirismo:
— Faz-me um Bobone!
(e sai pela direita alta; o Rei sai SEMPRE pela direita alta.)

ALEGRA-BOCAS

Nos bastidores do Grande Teatro, os atores enfiam os dedos em caviar de esturjão “sterlet” (Acipenser Ruthenus), o único produto alimentar de cor dourada que se conhece na natureza. Ignoram a etimologia com o mesmo fervor com que ignoram as tostinhas de trigo duro, mas dão-lhe forte nos shots de vodka e vão imensas vezes à casa-de-banho. De acordo com o novo acordo ortográfico, boémia agora escreve-se booh!émia. Betos da Foz a fazer de conta que são gunas meets disfunção sexual grave. Meninas, de ambos os sexos, vestidas de Made in Bangladesh da cabeça aos pés, abrem a boca de sono (ou então de pasmo, não se percebe bem); desligam o iPhone para poupar bateria, deixando-se afogar na sua própria vaidade soporífera. Há uma que se levanta, camisa irónica, bandolete transgénero, calça a comer-lhe o cu. Fica de pé uns segundos em posição três quartos, boca-de-pato, pulso quebrado. A seguir vocifera, fechando as vogais e comendo sílabas:
— ‘Méquié, ‘ssoal, isto já deu… Nã’ vai ‘ver after?
(não sai, fica; eternamente.)

ENTRADA

Garimpeiro, substantivo masculino. Aquele que enfia o dedo no cu da galinha a ver se traz ovo. Figurado: folião, borguista, farrista, zombeteiro, galhofeiro. Figurativo: ator, bailarino, performer. Figurão: estrela porno. Os atores saem finalmente dos bastidores, concentradíssimos, mas a fazer de conta que estão descontraídos. Caminham em cima do linóleo branco de marca EUROPA™ com os seus ténis de cores gourmet; o linóleo brilha, parece ter luz própria de tão igual que é a todos os outros linóleos brancos de todos os outros espetáculos que já vimos. É côncavo e convexo ao mesmo tempo, não se percebe. É vegan. Os atores fazem uns movimentos neutros com os braços e o pescoço, como que a dizer: “Isto não é carne nem é peixe”. Tal como os espetadores, que permanecem tenebrosamente sentados a comer bolachas Belgas™ que trouxeram do foyer. Uma das atrizes meneia finalmente a cabeça, fixando o público, para dizer, num tom de voz Sofia Aparício:
— O novo é o novo novo…
(e continua a passar os dedos que ainda cheiram a gordura de esturjão pelo linóleo-branco, qual espetadinha-de-rabo-na-boca, a fazer de conta que é pobre, mas mortinha por regressar aos bastidores, onde faz de conta que é rica.)

PEIXE

Cortina. Ouve-se um excerto da versão poortuguesa da música “Anaconda”, traduzida para “Lagartixa”. Uma luz intensa ofusca o público, mas ninguém ousa abandonar a sala. O cenário é agora uma boîte dançante, com bolas de espelhos, manequins sem cabeça, televisões avariadas, e outros fetiches mal resolvidos com os anos 90 por todo o lado. Entra ROGÉRIO NUNO COSTA, o rei-vai-nu, despido de ouro falso da cabeça aos pés, o cabelo pintado de uma cor irónica (tipo caju) e uma referência ornamental qualquer ao Terceiro Mundo (por exemplo: uma bindi no meio da testa). Pára no centro do palco, lambe o dedo indicador e levanta-o no ar, como que a descobrir o Norte pelo andar do vento. A seguir entra O ARTISTA RESIDENTE com uma cabeça de porco verdadeira enfiada na sua própria cabeça. Mira o corpo coberto de ouro de ROGÉRIO NUNO COSTA e atira-lhe com um maço de dólares falsos. Ruído ensurdecedor, mudança drástica de luz. Começa o diálogo:

ROGÉRIO NUNO COSTA — Conjugas tudo no mais-que-perfeito (simples, composto ou mistura de ambos), transformas o infinitivo dos verbos em substantivos (sobretudo nos títulos) e substituis “cheio” por “pleno” para dar assim um ar latinizante à coisa. Comprova-se: escreves pooesia!

O ARTISTA RESIDENTE — Esse teu amor passional precisa de fundamentação conceptual…

ROGÉRIO NUNO COSTA (apontando para a porta do Zoom) — A diferença entre dar o cv e dar o cu é quase nula!

O ARTISTA RESIDENTE (cínico, comendo sushi) — Que nigiri que tu és!…

ROGÉRIO NUNO COSTA — Justamente! Eu cá nunca vi nenhuma árvore a morrer de pé. Proponho uma reforma estrutural de todas as metáforas de uso corrente.

O ARTISTA RESIDENTE — Verosimilhança é o conceito que aplicas quando o que vês parece mesmo mentira!

ROGÉRIO NUNO COSTA — Ó meu grandessíssimo paneleirão! Mas tu já viste alguém a cozinhar com o “coração”? Ou com “amor”? (diz isto enquanto abana os dedos freneticamente, como que a tocar air piano)

O ARTISTA RESIDENTE (atirando pó dourado ao ar) — Todos precisamos de um milagre… Em bolo bukake!

ROGÉRIO NUNO COSTA — Do caco, estúpido!

O ARTISTA RESIDENTE (cantando) — Quando eu queria que dissesses sim, deste-me um não que até meteu medo! (repete uma vez)

ROGÉRIO NUNO COSTA (cantando mais alto, mão na anca) — Agora queres mas eu digo assim: chupa chupa chupa, chupa no dedo!

(O número de telefone do Apoio ao Cliente da Sociedade Portuguesa de Autores começa a passar em rodapé. Os dois atores, agora vestidos de Batman e Robin, desatam à chapada pós-dramática enquanto berram “Cala-te!” e “¡Cállate!” alternadamente. Cortina.)

INTERMEZZO
Leitura da sinopse:

“O cosplay é a palavra-valise que aglutina costume com play e refere-se a uma actividade lúdica praticada por seres humanos que gostam de fazer de conta que são personagens. Essas personagens podem vir dos universos anime e manga, mas também dos videojogos, do cinema, da música, do teatro de época (ou da época), da gastronomia (movimento recente que dá pelo nome de cozeplay), ou até da Nightlife™ (movimento também recente que dá pelo nome de corteplay, onde os jogadores fazem de conta que estão MESMO numa festa, que essa festa está MESMO a ser a puta da loucura, e que estão todos MESMO a divertir-se que nem porcos na lama). O objetivo é dar forma (sem conteúdo) a essa ideia genérica e trans-epocal a que damos o nome de meta-festa temática (conceito operativo que está na base de toda a produção cultural/artística desde que o homem é Homem até à atual idade). Como refere Slavoj Žižek…”

(a leitura é interrompida pelo gongo; o público é chamado para a segunda parte da sessão de Fake Yoga™.)

CARNE

O cenário é essa catedral do empreendedorismo artes-anal óleossiponense chamado A Padaria Portuguesa. Várias pessoas de calça arregaçada e sapato-sem-meia comem cenas com rúcula, mozzarella e tomate seco em pão que parece que foi polido, envernizado e retocado em Photoshop. As paredes estão cobertas de monos de plástico a imitar o rústico. Os empregados são todos licenciados em Design: têm todos cara de Helvetica. Os clientes falam uma língua que não dominamos; deve ser €uropeu. Das colunas sai uma música dos Deolinda que desafia o ouvinte a não ir ao CCB. Entra a SANTA PADROEIRA DOS CLICHÊS, vestida com um vestido branco e dourado para os pobres, azul e preto para os que fingem a pobreza que deveras sentem. Traz um microfone-à-Madonna, parece que vai dar uma TED talk, mas fala como se fosse programadora cool’tural. Chama pelo ART’LETA, que entra a correr, mascarado de emergente:

SANTA PADROEIRA DOS CLICHÊS — Ó cagão, anda cá! Estou a pensar abrir um restaurante chamado El Bullying. Que achas? (ri-se)

ART’LETA (com sotaque de todas as regiões do País, menos de Lisboa) — Ai, num sei… Ó Boz! Booooz!!! Puosso responder a iesta porgunta? Boz?!

SANTA PADROEIRA DOS CLICHÊS — És mesmo deficiente, pá! Não percebeste que a pergunta tinha rasteira? Estava a testar a tua endurance conceptual, ou seja, a tua stamina social, a ver se te aguentas de joelhos (a rezar!) até à próxima saison, ou se és dos que cospe no prato que come à primeira oportunidade!

ART’LETA (ajoelhando-se para receber a medalha de ouro) — Prumiêto resistire à tentaçom de fazêre seija o que fuor cum inspiraçom maijómenos diréta na iárte cuntextuále, na crítica institucionále, e na relaçom do artista cu pudêre. Pêlo que precebi, isso bai sêre a ciêna. E iêu soue intuleránte a ciêna. Quándo istoue em ciêna, fico tuôdo inxádo, hiper-bêntilo e fico cum buntáde de faziêre audições…

SANTA PADROEIRA DOS CLICHÊS — Pronto, já chega! Vai lá distribuir cartazes.

(Saem os dois, de braço dado, a caminho das Galerias. A palavra mais vezes repetida é “interessánte”.)

DOCE

Coro: “Uma da manhã, hey, bem bom, duas da manhã. Bem bom, já três da manhã, hey, bem bom, quatro da manhã. Bem bom, cinco da manhã, hey, bem bom, já seis da manhã. Bem bom, sete da manhã, hey, bem bom, oito da manhã…”. Fumo. Drum ‘n’ bass da pior qualidade possível. Espelhos por todo o lado. Gosma no chão. Os performers caem, intoxicados, um a um, no centro da contemporary dancefloor. Aproximam-se uns dos outros, olhos raiados de sangue, mente vazia; trocam fluidos e abanam a peida ao ritmo de temas trap. Não têm dentes, só língua. No meio do caos, entra Penny Arcade, a fumar 27 cigarros ao mesmo tempo; caminha por cima dos despojos, rindo, dançando:
— São como bandos de pardais à solta… Os put@s… Os put@s…
(sai; nada mais há a fazer senão sair.)

FRUTA

Entro eu, vestido de Facebook. Fico a olhar o público com o mesmo ar condescendente que ensaio ao espelho todos os dias desde 1978. Playbackando a minha própria voz:
— Se somos aquilo que comemos, então também somos aquilo que cagamos.
(blackout.)

DIGI’STIVO

Doem-me os dedos de tanto falar. Interrompo o raciocínio para fazer um último xixipster e escrever, caps lock: NÃO TENTAR ISTO EM CASA. Este texto, que é uma receita para o Sucesso, dirige-se ao olho da rua. É de lá que brotam as palavras que o premeiam. Permeável e premiável são quase homófonos, logo, são quase sinónimos. Os efeitos secundários e terciários seguem em letra pequenina. Só lê quem for paciente, ou quem já tenha perdido a paciência para a Paciência, ou quem já não tenha cu para o sofá. Este texto, que é uma receita, deve ser visto à lupa, portanto. Miopia seletiva. Que tudo o que luz, não é ouro, está só coberto de spray dourado e filtros do Instagram. Que em terra de pobres, quem tem um camuflado é rei. Que o sucesso não é para todos, é para tudo. Que isto é só um exemplo de apresentação: o leite é cola branca e a fruta é de plástico. Que os espetáculos são a frente e o verso, ao mesmo tempo, de uma embalagem de cereais de marca Americana™. Que os mais vendidos são os Lucky Charms, twink’le twink’le little stars com grandes decotes e banha de leitão a escorrer no tronco. Que ler é preciso, mas com moderação. Que não é só a comida que é vegan; agora o turismo também, e a espiritualidade, e a divulgação científica, e a arte, e as trocas económicas, e o desporto, e as ações beneméritas, e o jornalismo. Que é tudo só parra, sem uva. Que é tudo corrido a bife de soja com sabor a porco, a caminhar a passos largos para bife de porco com sabor a soja. Que a mediocridade é o novo avant-garde. Que less, temos pena, é mesmo só less.
Pausa.
Porto™, A Melhor Cidade do Mundo, S.A. é agora um medicamento homeopático embrulhado em papel reciclado com logotipo InDesign e desconto especial para profissionais. Não falha. Como aqueles mega-DJ’s da atualidade Macintosh que se vêem obrigados a fazer erros de propósito para provar que estão mesmo a passar som. Há que acreditar! Com muita força! Que 0,1% de talento diluído em 99,9% de água conta como missão. 
Pausa.
No Porto™, A Melhor Cidade do Mundo, S.A., existem duas receitas para o Sucesso: a “social” (a Vida não imita a Arte, mas o Facebook), e a “artística” (a Vida a ser constante e permanentemente aniquilada pela Arte, mesmo que no Facebook). Não são equivalentes; não se complementam. Que os Artistas não passam de Atores a fazer de Artistas. Que 0,1% de receita artística diluída em 99,9% de receita social conta como missão.
[Parêntesis:
o Futuro™ entra de rompante em cena e faz a cameo appearance mais fugaz da História.
Olha para a cidade em modo rolling eyes e diz:
“LOL”.] 
Só existe uma obra artística, a mais abstrata das abstrações, e a mais poderosa também: o dinheiro. Tudo o resto não passa de carne pra canhão. É preciso chamar os Beuys pelos nomes: somos todos artistas o caralho! Andamos a rir-nos de coisas sérias e ainda temos a lata (uma daquelas latas com rótulo vintage) de ir para as escadas da Assembleia mascarados de neo-punks de Ermesinde queixarmo-nos que fomos violados… Por nós próprios! 
Pausa.
Uma chuva dourada cai agora em cima do público, que fica a olhar o palco à espera que alguém diga: “Já acabou”. Recusa-se a fazer figura d’urso e a bater palmas na deixa errada; recusa-se a ser Público, portanto. Todos os twink’le twink’le little shows que se fazem por aí, depois do sol se pôr e a escuridão esconder os erros de racord e as assimetrias de casting, resumem-se a esse momento de indecisão palerma, a essa redundância que nunca mais acaba, porque nunca começou, que o único género de arte que existe é o género artístico.
Pausa.
Quem vai à guerra (dos mundos), ou dá ou leva; não há terceira via possível. Precisamos da boca para comer, mesmo quando já só comemos metáforas, ou quando já só usamos a língua para falar. E precisamos de continuar a acreditar no Menino Jesus, lutando afincadamente por um assento no anfiteatro do Clube Disney™. Fade Out. O Autor aproveita para fazer uma diagonal ao Sucesso, abandonando o palco pela direita baixa, middle finger em riste, cantando: “Perdoai-os, Senhor, que eles sabem o que fazem”.
RNC, 2015, No Rights Reserved
[Este texto é uma adaptação de outro texto intitulado “Finger Food“, originalmente publicado na revista RETINA (Coletivo 111). Esta nova versão, direcionada/dedicada à cidade do Porto, integrou a performance “A Guerra dos Mundos” na forma de texto-de-sala impresso em 4 folhas A4 agrafadas. A performance foi apresentada no dia 14 de Agosto de 2015 no Passeio das Virtudes (Porto) para o programa “Pôr-do-Sol nas Virtudes“, organizado pela Sonoscopia Associação.]

YEAR ONE, #1. Bucharest [Romania]

Starting tomorrow in Bucharest (Romania), the very first proto-academic cluster for the ‘Year One’ of the non-art educational project “University/Yliopisto“, comprising a workshop, a lecture and a group session. A first draft for the official website will be launched soon after the end of the activities. Stay tuned!
About the workshop & the lecture:
UNIVERSITY | YLIOPISTO
“Dogma 2005: A Prison without Walls”
Workshop with Rogério Nuno Costa
July 20-24, 16:00-19:00
Lecture: July 23rd, 20:00
ODD, Bucharest, Romania

ZonaD – platformă mobilă de dans contemporan și E-Motional

The research project developed under this title by the Portuguese artist, curator and theoretician Rogério Nuno Costa will include an intensive workshop aimed for art practitioners and/or theorists who have already developed some work in the fields of performing and/or visual arts, willing to be confronted with a set of rules that will question their notions of artistic freedom, the methodology behind their creative processes and, above all, the means by which they operate with the formats surrounding the concept of “memory”: archives, documents, leftovers, traces and tracks. The workshop is 50% practical/50% theoretical, and is developed around collective brainstormings, group research, short presentations (lectures/talks), thorough documentation (video, photo and text) and, if possible, a broader audience final presentation. 
The workshop also includes a talk focused on the idea of “self-obstruction” (by the reposition of the artist inside an intriguing critical frame: “the prison without walls”) as a way to achieve a more conscious and transversal notion of “artistic freedom”. This moment can work perfectly as an introduction to projects created by the workshop participants themselves. Some excerpts of the movie “The 5 Obstructions” [by Danish filmmakers Lars von Trier & Jørgen Leth] are used as a starting point and/or as an illustration of the questions and problematics produced. This presentation may assume many different kinds of media: photography, installation, video, sound, text-based performance, dance, drama, conference/lecture-based performance, etc.
The participation to the workshop is free of charge. Interested art practitioners are invited to register by submitting their biography, brief details on their portfolio and a short description of a project there are currently developing, which they would like to discuss/present during the workshop. The workshop is open to maximum 10 participants. The workshop is developed in connection with Universidade/University, the ongoing research project including workshops, group sessions and artist talks, undertaken by Rogério Nuno Costa.
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